Em um mundo onde a tecnologia avança a passos largos, os médicos enfrentam não apenas o desafio de cuidar da saúde, mas também a pressão crescente de tarefas administrativas. O artigo de Daniel Becker, pediatra sanitarista, destaca a sobrecarga que recai sobre os profissionais da saúde, que, após longas jornadas, se veem afligidos por demandas adicionais que muitas vezes parecem intermináveis. Este impacto precisa ser compreendido e debatido. Confira a análise de Becker neste artigo do O GLOBO.
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Há alguns dias, uma discussão agitou um grupo de 80 pediatras do Rio. O tema é dos que mais mobiliza os médicos atualmente. Não era uma doença ou um novo tratamento, mas um aplicativo digital que virou a vida de muitos pelo avesso, duplicou a carga de trabalho e invadiu seus espaços privados e seu já escasso tempo de descanso: o Whatsapp.
Um dos veteranos da especialidade se manifestou mais ou menos assim:
Atuo há quase 50 anos e atendo ainda muitos pacientes. Respondo a todos com rapidez. Telefono para saber notícias. Acompanho os que vão ao hospital. Estou sempre atento, mas o zap extrapolou seu papel. Estou muito cansado e irrita do. Quero continuar a todo vapor, adoro o consultório. Mas a invasão da minha vida pelo WhatsApp e a demanda interminável está causando um estresse imenso.
O aplicativo mudou a vida de muita gente. É fato que ele facilita a comunicação, promove agilidade nos negócios, mas o abuso tem se tornado um motivo de exaustão e mesmo de transtornos mentais para diversos profissionais médicos em especial. Muitos passaram a trabalhar 24 horas por dia, 7 dias por se mana. Ninguém suporta esse ritmo. Há muitos relatos de burnout e estresse extremos.
Além disso, o mau uso na área médica pode provocar problemas graves, por erros de avaliação que ocorram pela pressa ou por ruídos de comunicação. O aplicativo não é lugar para consultas (inclusive proibidas pelos conselho), apenas para orientações iniciais. Mas no mundo real, onde ainda não desenvolvemos uma cultura de uso apropriado dessas novas tecnologias, com normas razoáveis de conduta, a utilização inadequada e o abuso são muito frequentes e podem ser perigosos.
Essa é uma situação bastante peculiar do Brasil (o maior usuário do app). Em grande parte do mundo, o WhatsApp sequer é utilizado na comunicação com o médico, que fora da consulta é muito restrita.
As solicitações chegam às raias do absurdo, geram incredulidade e indignação. O imediatismo é espantoso. Uma pergunta sem história, detalhes ou contexto: meu filho está com tosse, o que eu faço?
Ou ao contrário: um relato longo de um problema complexo, que exige obviamente uma história bem feita e exame clínico, vem com a demanda de um diagnóstico e tratamento. Longos vídeos de criança tossindo, áudios de 11 minutos esperando respostas. E se o médico demora vem a reclamação:
“Você tem que estar disponível sempre, foi para isso que paguei sua consulta”.
Disponibilidade permanente? Quem é capaz dessa proeza? E esse passou a ser critério do que
significa uma boa assistência para muitos.
O imediatismo e a inadequação se tornaram marcas da relação médico/ paciente. Pedidos de atestados em fins de semana ou de avaliação de laudos de rotina de madrugada, com expectativa de resposta. Chegam sem aviso fotos de fezes, vômitos e catarro. Ou pior, fotos de partes íntimas expostas, inclusive com o rosto da criança aparecendo.
Imagine estar dormindo, ou jantando com a família às 22h, depois de um dia exaustivo, e ser interrompido por um pedido para avaliar um exame de rotina ou um cartão de vacinação (não levado à consulta por esquecimento), ou para emitir um encaminhamento para fonoaudióloga. A mensagem interrompe, desconecta, atrapalha mesmo que não precise ser respondida de imediato. Ela fica lá, buzinando em nossa cabeça. Por que mandou a essa hora? “Por que eu ia acabar esquecendo amanhã”.
Ao término de um dia de horas de consultório e visita a crianças internadas, o trabalho continua: são pedidos de receitas digitais, encaminhamentos, atestados de toda a natureza, preenchimento de formulários, declarações, ou dúvidas banais ou sem qualquer urgência (que tipo de banana é melhor?). O estresse e exaustão são inevitáveis.
É uma situação que afeta a maioria dos médicos e seus pacientes, e exige entendimento e recomendações.